Wednesday 20 May 2009

A crise do museu global

Num fim-de-semana dedicado aos museus – esta segunda-feira, dia 18 de Maio, comemora-se o Dia Internacional dos Museus –, Manuel Borja-Villel, director do Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, de Madrid, Espanha, explica qual deverá ser a importância social, económica e cultural de um museu enquadrado pela noção de «museu global».

Como caracteriza o papel dos museus no mundo em que vivemos?
Vivemos numa época na qual o «trabalho», a economia, não é só de produção, é também de consumo. É uma época «pós-fordista», na qual o trabalho cognitivo tem uma centralidade nunca anteriormente conseguida. A informação e o conhecimento são muito importantes. Obviamente, os museus, a cultura e a arte são elementos cognitivos, formam parte desta nova estrutura económica, na qual adquirem também esta centralidade. Por outro lado, o «poder» é discursivo. O direito ao discurso não só reflecte o «poder», mas é o «poder» pelo qual se luta. O conhecimento, a cultura e os museus são estruturas discursivas. O museu não pode estar afastado dos vectores que movem a actualidade económica.

Quais são estes vectores económicos?
O negócio imobiliário; o turismo ou os fluxos de pessoas; a cultura do consumo ou do ócio. Nestes parâmetros, nesta estrutura económica, foram criados vários museus por razões instrumentais, os quais muitas vezes respondem mais a estas forças económicas do que a necessidades realmente culturais. Todos sabemos que, em algumas ocasiões, foram criados museus em lugares degradados como uma forma de «gentrificação», de «elitização», de fazer crescer o status económico e social de uma comunidade ou bairro. Também sabemos que os museus são estruturas de atracção turística. Por exemplo, o Guggenheim, em Bilbau [Espanha]. E, relacionado com esta componente imobiliária, a arte, a cultura e os museus – como o elemento mais estratégico nesta estrutura – serviram, de algum modo, como uma espécie de «lubrificante social» para acalmar tensões, suavizar as tensões que podem gerar-se em qualquer sociedade. Há uns anos quando existia um bairro marginal iam os sociólogos. Actualmente vão os artistas, curadores, etc.

Qual é a situação actual?
É uma situação, que, para mim, não é nada optimista. É uma situação onde a arte, a cultura, são sobretudo entendidas como elementos de conhecimento, e elementos do conhecimento que distinguem ideologias, a cultura mais curricular, mais canónica, de algo mais aberto. No entanto, o que esta estrutura faz, de algum modo, é dirigir a atenção para um contentor genérico onde tudo pode ser introduzido e não tem nenhum valor. Onde tudo é possível porque o sistema absorve tudo e é capaz de consumir tudo.

Neste sentido, sempre gostei de comparar dois livros: Mil Novecentos e Oitenta e Quatro [1949], de George Orwell, e Kingdom Come [2006], de J. G. Ballard. No livro de Orwell, no início, o protagonista começa a escrever, escondido, porque sabe que na sua casa o «Grande Irmão» está a ver. O facto de escrever, de ter uma actividade intelectual, é considerado um elemento revolucionário. E, por escrever, pode ser preso ou condenado à morte. Por isso tem de se esconder. Esta é a ideia moderna na qual acreditávamos. A cultura, o conhecimento, por si sós, podiam mudar a sociedade. Por oposição, há outra ficção, uma distopia, Kingdom Come, cuja narrativa ocorre num lugar muito autoritário, fascista. O protagonista pergunta ao seu chefe como é que naquele lugar tão autoritário não há censura. Pode-se escrever, falar, etc... Ao que o chefe lhe responde: «Não há censura porque não há nada que censurar, que dizer, porque tudo já foi transformado em mercadoria. Tu podes dizer o que quiseres que é um produto comerciável.»

O que se conseguiu com o sistema foi que o que havia de radical, de ruptura na arte moderna, é absorvido para um contentor cuja função tem mais a ver com o turismo, com o capital financeiro, com o imobiliário, tem a ver com processos sociais, mas tem pouco de ruptura, de conhecimento.

O que fazer?
Nesta situação há que ter em conta dois factores. O primeiro, mencionava-o Walter Benjamin, é que o conhecimento não significa nada. Há que dar o conhecimento como tal – é um peso que transportamos – aos espectadores, aos leitores, enquanto geramos estruturas que permitam desnudar, entender, estes tipos de conhecimento. O conhecimento em bruto é meramente ideologia. É importante saber que temos de criar estruturas que permitirão que esse contentor seja radical, seja transformador, por um lado e, por outro lado, sustentado por outro aspecto, como é explicado por Pasolini em Che cosa sono le nuvole? [1967], um filme no qual os actores são marionetas e representam Otelo, num teatro isabelino. O que Pasolini quer dizer é que o destino está marcado, como expresso na tragédia grega, na qual os filhos têm de pagar pelas culpas dos pais. É muito difícil separarmo-nos deste destino, a não ser que tenhamos um conhecimento poético e as ferramentas para que este conhecimento poético permita uma transformação. No filme, Otelo não quer matar Desdémona, e, no entanto, Desdémona quer que a matem porque é o que está escrito e lhe ensinaram. Quando existe esta tensão, a única possibilidade é a rebelião do público. Há um momento em que o público rompe as estruturas do teatro, salta para a cena e transforma o teatro isabelino numa farsa, num carnaval. O carnaval, como explicou o linguista russo Mikhail Bakhtin, é a transformação da sociedade. Nesta situação, e em resposta à tua questão, qual é a importância social, económica e cultural dos museus num mundo global? Temos de entender que os museus respondem a estas estruturas. Hoje em dia, a acumulação de conhecimento não quer dizer nada, pois a acumulação é só acumulação. Neste contexto a função dos museus é criar estruturas que permitam a rebelião do público,

Estamos a falar da «distribuição do sensível», no sentido em que é definida pelo filósofo francês Jacques Rancière...
Sim. Isto significa ter museus onde claramente se compreenda esta visão global. Museus onde importe trabalhar mais com as minorias do que com as massas turísticas. Que não tenhamos medo da diferença entre elite e populismo. Entre esta dualidade falsa, o que eu proponho é uma estrutura de múltiplas minorias. Uma estrutura em que cada minoria venha e antagonize as restantes.

Isto numa época em que os museus e a sociedade se convertem numa espécie de grande centro comercial, e onde o museu é o último centro a juntar-se a este edifício. De facto, o que os museus fizeram foi aprender com as grandes multinacionais como a Nike ou a McDonald’s. É o mesmo fenómeno, inclusivamente ao nível de baixar a qualidade. O McDonald’s é a degeneração da comida. Não é comida como «gosto» nem como «necessidade». É «aberração». Esta globalização dos museus é absolutamente o mesmo.

Nesta dicotomia, o que acredita ser necessário?
Os museus devem de ser espaços públicos. Isto é fundamental. O espaço público, a esfera pública, é a esfera de uma cidade. Ou seja, num momento em que estão a desaparecer e se estão a converter num grande centro comercial, os museus têm a obrigação de se transformarem em espaços públicos.

O que compreende por espaço público?
No sentido clássico, do filosofo alemão Habbermans, é um espaço de antagonismo. Onde existem múltiplas minorias e indivíduos que antagonizam e criam tensões. O espaço de consumo, o centro comercial, é um espaço de consenso. Portanto, não há censura, pois todos pensam o mesmo. Se todos pensam que a estrutura da cultura se baseia num Top 10, no que se consome mais, no que é mais popular, então, isto não tem nada a ver com a cultura.

É necessário criar este espaço público, entender que os públicos não são uma grande massa, mas múltiplos. Criar uma estrutura narrativa, não única, mas múltipla, que permita as múltiplas vozes, as múltiplas linguagens, de modo a poder explicar não só o que queremos dizer, mas o que o outro também tenha concluído com a sua estrutura mental, com a sua linguagem, ver a sua história incluída. As histórias dos museus são basicamente uma forma highlight, universal, única. No seu lugar, uma multiplicidade de leituras.

Ou seja, a transformação, de algum modo, do museu, de um lugar meramente de espectáculo, numa espécie de colégio – no sentido medieval da palavra, não neo-aristotélico, dos mosteiros como lugares de discussão, do conhecimento, de contemplação, lugares onde havia ritmos de vida muito complexos, que trabalhavam em rede uns com os outros. Desta forma, creio que estamos a entrar numa nova Idade Média, onde os museus podem possivelmente não ser como os concebidos até este momento. Podemos estar a entrar numa nova fórmula, entre colégio, universidade e museu – isto é o meu wishful thinking.

A minha hipótese é de que este tipo de museu global, este tipo de museu dedicado meramente aos turistas, vai entrar em crise. O resultado desta crise será uma espécie de nova idade de especialização da sociedade, onde espero que os museus, como centros de arte, tenham um papel importantíssimo.

Manuel Borja-Villel, 52 anos, foi director da Fundação Tàpies, em Barcelona, desde a sua criação, em 1990, até 1998, quando assumiu a direcção do Museu de Arte Contemporânea de Barcelona. É director do Museu Nacional Centro de Arte Rainha Sofia, de Madrid, desde Janeiro de 2008. Um dos primeiros actos de Borja-Villel como director do Rainha Sofia foi reordenar o percurso dos visitantes em torno do quadro mais emblemático do museu: Guernica, pintado por Picasso em 1937. Entretanto, assegurou o empréstimo de vinte obras de Goya, pertencentes ao vizinho Museu do Prado, como elementos essenciais para a reorganização expositiva da colecção do Rainha Sofia, a inaugurar no final de Maio.

Published at NS'175/IN#071, Destaque (53-56), (Diário de Notícias N.º 51175 e Jornal de Notícias N.º 349/121), 16 de Maio de 2009 Portugal © MNCARS

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