Tuesday 22 September 2009

Joana Vasconcelos, entre o luxo e o banal

A arte de transfigurar objectos banais do nosso quotidiano

Desde o início da sua carreira, as peças de Joana Vasconcelos reexaminam noções de criação, autoria e, de forma singular em Portugal, dão nas vistas pelo uso de objectos do quotidiano «reciclados» em obras de arte.


Os trabalhos de Joana Vasconcelos (Paris, 1971) lidam com a esfera inter-humana, as relações entre pessoas, comunidades, indivíduos ou grupos sociais. Conforme diz a artista, «as panelas são etnografia portuguesa? Não! Os talheres de plástico? Também não! São produtos culturais de uso corrente, são as formas conscientemente ignoradas do nosso quotidiano». Ou seja, ao invés de elaborar formas com base em matéria-prima, o material que manipula não é primário, ela trabalha com objectos já em circulação no mercado cultural, objectos informados por outro objecto.

O curador e crítico de arte francês Nicolas Bourriaud no livro Pós-produção (Postproduction, 2002) defendia que as noções de originalidade (estar na origem de) e de criação (fazer qualquer coisa do nada) estavam a diluir-se numa actividade de pós-produção. Um agenciamento no qual as misturas praticadas pelos DJ eram o exemplo por excelência deste contexto cultural contemporâneo, ao manipular e inserir novas transições nos fluxos de informação sonora pré-existentes. O DJ é uma pessoa que usa fragmentos de músicas gravadas para fazer novas composições. «A ideia do DJ é uma ideia que tem a ver com ir buscar coisas, outras composições musicais, por exemplo. Um DJ vai buscar uma música à história da música e faz uma nova composição enquanto a inscreve numa nova classificação musical. Eu não vou buscar obras de arte de ninguém mas sim objectos banais do nosso quotidiano», diz Joana Vasconcelos.

Neste âmbito, qual é a diferença entre o que faz e o que fazem os DJ’s?
Os DJ misturam uma coisa com outra coisa e o resultado é um novo produto musical em relação aos anteriores. Eu não faço misturas, eu pego num objecto – um sapato ou panelas, que não são de ninguém, são objectos do quotidiano público, não são objectos autorais, não são objectos com identidade histórica, ou um castiçal, por exemplo, pois se tu olhares o projecto do castiçal [Néctar, 2006, feito em ferro metalizado e cromado, LED de alta intensidade e garrafas de vinho], as garrafas são do mais normal e o castiçal é uma ideia de um objecto –, num conceito-tipo e com um material particular faço uma outra coisa posicionada fora do seu enquadramento histórico inicial. Assim, o que existe é o desenho de um novo conceito para um objecto de uso impregnado na cabeça como um objecto tipo. Eu não misturo os componentes, não altero a sua fisionomia, a sua identidade, o seu conceito, ou os transformo noutra coisa. O que eu transformo são as ideias concebidas pelo comum sobre um determinado objecto.

Ou seja, aproprias-te de objectos do imaginário comum não inscritos na etnografia nacional oficial e dota-os de um outro objecto, por exemplo, enquanto manténs as suas propriedades originais...
As minhas peças transformam a ideia fisicamente enquanto criam uma individualidade própria. As coisas existem sobrepostas, justapostas, não as estrago, não as corto, não as altero, não lhes mudo a identidade. Pelo contrário, eu afirmo a identidade de cada objecto, não são uma mistura. É exactamente o oposto dos DJ. Estes alteram a identidade ao transformá-la noutra coisa. Alteram o produto original, eu não. E isto é uma particularidade do meu trabalho.

Por outro lado, também não vou buscar coisas com muita identidade. Vou buscar coisas com uma identidade muito aberta, do domínio público, e que, na verdade, eu personalizo e a que eu dou uma identidade própria. É como se estes objectos tivessem perdido a sua identidade inicial e passassem a ter uma identidade especial. Por exemplo, o coração de Viana [Coração Independente Amarelo, 2004, feito em ferro pintado e talheres de plástico translúcido], é um objecto banal construído com objectos banais e, no entanto, é uma jóia hiperluxuosa. Ao fazer o coração de Viana em talheres de plástico estou a fazer um objecto banal, uma banalidade.

Mas o que é que faz a alteração?
O que faz é destruir conceitos preestabelecidos, é deslegitimar o institucionalizado e desestruturar a ordem entretanto criada. O trazer do privado para o público, ou do público para o privado, o trazer de um nível social abaixo para outro mais elevado. Ao alterares os paradigmas conceptuais e revolucionares a distribuição do sensível, as pessoas questionam-se sobre o que é plausível: a filigrana de Viana de Castelo é de ouro ou prata, mas agora é de plástico? Depois surge a ideia de se este objecto é merecedor da ideia de luxo. Porque o luxo está associado a certos tipos de matérias categorizadas pela sua raridade, principalmente. De repente aquilo, aquele objecto, simboliza o luxo por ser feito de plástico. Essencialmente saímos dos guetos conceptuais entretanto construídos, democratizou-se a arte e o acesso à arte.

O meu trabalho tem a ver com a massificação, com essa ideia de que tudo é consumido. Portanto, eu vou buscar os produtos que menos valor têm e que são consumidos por um maior número de pessoas e transformo-os em peças de luxo (com um valor económico no outro extremo), ou seja, eu passo do hipermercado para o museu.

Os teus objectos são formas que questionam as formas sociais...
Questionam o principal «valor» que é o consumismo. As aspirinas [Sofá Aspirina, 1997, blisters de Aspirina] e a cama de valium [Cama Valium, 1998, blisters de Valium] são uma crítica ao consumo de drogas, de medicamentos. Por exemplo, as pessoas mais sensíveis a esta obra são as que têm ou tiveram um forte contacto com aquele medicamento. Falam de experiências pessoais muito fortes, revelam uma certa tensão consumista que tiveram com os produtos utilizados nas peças. As pessoas consomem e raramente são questionadas sobre o excesso de consumo, seja ele de álcool, de medicamentos, de roupas, etc... Consumimos tudo duma forma completamente alucinante. Neste contexto, as minhas peças «pegam» no que toda a gente consome. Não se considera que se consome panelas ou tampões mas, apesar disso, o maior consumo dá-se em objectos socialmente menos valorizados, os objectos banais, comuns, porque só se dá valor ao que é caro e raro. Curiosamente, a aspirina é talvez o medicamento mais consumido do mundo. A única coisa que faço é pôr o dedo no comum. E a essa questão é que as pessoas não estão habituadas. Estão, sim, habituadas a que ponhas uma T-shirt a dizer «eu quero uma aspirina» ou «dá-me um tampão». O consumismo desesperado dá-se muito mais na banalidade do que no luxo.

E onde é que as tuas peças se posicionam dentro do contexto contemporâneo?
De alguma maneira tem sido muito curioso viver com essa particularidade, da surpresa de as pessoas serem confrontadas com a sua própria banalidade e terem de dar valor a objectos de uso comum, como talheres de plástico, panelas, tampões, animais de loiça, gravatas, espanadores ou blisters de aspirinas. Nos sapatos [Priscilla, 2007, feito de tachos e tampas em aço inox], as mulheres que gostam de moda vêem um sapato de design, enquanto as mulheres que dão mais valor à família, aos aspectos tradicionais da sociedade portuguesa, que cozinham, por exemplo, fazem outro género de associações, vêem mais os diferentes tamanhos de tachos e panelas. São poucas aquelas que conseguem juntar as coisas e fazer outra interpretação, pois ou só querem ver uma coisa ou outra. Não estão muito interessadas em fazer analogias ou o que seja. É ficar entre o luxo e o banal, é um novo espaço. Criar um novo espaço onde intervenho, onde não faço crítica, e não desminto, fico nesse limiar. As minhas peças funcionam como uma ignição para questionar as nossas decisões e afirmações quotidianas.

Joana Vasconcelos nasceu em Paris, em 1971. É considerada uma das mais influentes artistas plásticas portuguesas da última década, com exposições em Portugal e no estrangeiro. Em Março de 2009, integrou a exposição colectiva «A Certain Stat of the World», no Garage Center for Contemporary Art, em Moscovo. Participou na Bienal de Veneza, em 2005, com a peça A Noiva (um candelabro composto por mais de 25 mil tampões). Recentemente, a peça Coração Independente Dourado foi vendida em leilão da Christie's por 129 mil euros. Em 2005 recebeu o prémio The Winner Tekes It All, atribuído pela Fundação Berardo, para a peça Néctar, e em 2000 venceu o Prémio EDP Novos Artistas. Tem formação em joalharia e trabalha a nível da escultura e instalações.

Published at NS'193/IN#089, Destaque (51-53), (Diário de Notícias N.º 51301 e Jornal de Notícias N.º 110/122), 19 de Setembro de 2009 Portugal © DMF (Direitos Reservados), Luís Vasconcelos, e Atelier Joana Vasconcelos

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