Thursday 10 December 2009

à crise..

A crise é uma mudança que sobrevém no curso de um processo degenerativo violento, de uma doença provocada por partículas desconhecidas (o estranho) ao corpo. As quais se manifestam através da incapacidade do físico em se exibir de acordo com o estipulado pelas normas e regras vigentes. Ao desviar-se do original (o singular), esta é uma perigosa conjuntura que tem persistido ao longo da história da humanidade – romanização, cruzadas, descobrimentos, renascimento, capitalismo, globalização, etc. – e que qualifica e determina o cânon ocidental (o exterior a influir sobre o secular).

Usualmente, a crise é precedida e justificada por movimentos de contracção interna. O sujeito, como um único órgão, contrai-se e toma o efeito da redução das duas formas expressivas – a degeneração e a regra – em uma só.

À é um elemento que tanto significa adjunção, aproximação, passagem a um estado, como apresenta o sentido de afastamento, de privação pelo qual os fenómenos desconhecidos se manifestam. Demonstra várias relações – sociais, económicas, políticas ou culturais –, enquanto indica a relação existente entre o sujeito e o predicado.

Ao preceder a crise, a palavra à designa simultaneamente a coisa que exprime a substância, e indica o ser sobre o qual recai directamente a acção expressa, ao substituir, na oração, o nome.

Nesta disposição sintáctica, de natureza civilizacional, os artistas têm as suas mentes na ordem caseira, no espaço Oikos, o centro da actividade doméstica (o primitivo); por oposição à natureza da Polis grega, ou da Domus romana, o espaço arquitectónico de reunião e conflito público, ou seja, a praça pública onde se encontra o mercado (o duplo). Para os artistas, os seus espaços domésticos, estão sempre com eles.

Tomemos, por exemplo, o navio. Para um marinheiro o navio é o seu espaço privado, inserido no espaço público, o mar, e o mesmo para o seu país. Para nós, todos os navios se parecem uns com os outros, e o mar é sempre o mesmo. Mas, para qualquer marinheiro, “não há nada de misterioso ... a não ser o próprio mar, que é a amante da sua existência e inescrutável como o Destino.” (Joseph Conrad, Heart of Darkness, p. 3, tradução do autor)

No mercado, na sociedade onde se encontra inserida, o destino da obra de arte é paraeconómico, pois não sendo propriamente um factor económico, está ligada à economia. Visão Sobre o Mercado (2009), de Miguelangelo Veiga (com 1 000 cm, a obra é vendida exclusivamente em múltiplos de 50 cm, esta requer a criação de uma evidência física da sua existência, tem de ser fotografada, e, ainda, tem de passar pelo acto de validação, através da assinatura do artista) ou as peças de Mikael Larsson (pequenas máquinas de registo de uma acção – o mecanismo é composto por dois tornos de precisão, reflectidos á distancia de duas caneta de feltro, a tocar na superfície emulsiva, por onde entre passa uma fina folha de um rolo de caixa registadora) exprimem várias relações, nas quais uma dessas ligações está conforme aos preceitos da economia – qualificam a sua causa ao encontrar a sua individualidade na multiplicidade da economia. No entanto, esta qualificação transporta-nos para o oikonomikos (a gestão do casa), a unidade básica da sociedade, mas também onde ocorrem na sua maioria os adultérios: Miguelangelo Veiga e Mikael Larsson, e ainda, Sara Nunes Fernandes, The Hut Project, Paulo Mendes, Giogio Sadotti pervertem o efeito do fenómeno de forma diversa (contrária) do que costuma ser. Criam uma paradinamia, ou seja, na imutabilidade das suas imediações, a versátil imensidão da vida é, também, na obra de arte, gerada e velada não por um sentido misterioso, mas por uma certa insipiência desdenhosa, esquiva. Também, nas peças de Francisco Sousa Lobo, Backward e Forward (ambas de 2009), de Ana Guedes, Natureza morta contra a parede (2009), de Francesca Anfossi, Escalator (2007) e de Fernando Mesquita, o motivo é transformar a energia produtiva bruta – a relação entre a arte (como singularidade) e a economia (como multiplicidade); entre uma obra de arte, com todas as implicações que daí advêm, e um produto resultante do consumo; mas essencialmente a ligação entre o real e a ilusão, a semelhança entre a verdade e a mentira, o reflexo do nós nos outros – em fenómenos pelos quais se manifestem a presença de partículas elementares, quer em repouso, quer em movimento.

Apesar do quotidiano socioeconómico (antes capitalismo, agora globalização) parecer sempre o mesmo – como se estivéssemos parados sempre no mesmo lugar sem nos mover, mas, quando, na realidade, passamos por vários lugares, locais onde ocorrem trocas, transformações – as infografias Where do You Want to Go Today? Web Search Interest : Travel (2009), de Patrícia Sousa, chuvas ácidas (estudos sobre a possibilidade de grande tempestade mundial), serie I (2009), de Lúcia Prancha, ou a série de gráficos desenvolvida por Romeu Gonçalves testemunham, como funções matemáticas representativas, a nossa vivência diária. A informação visual gráfica parece pertencer a uma sórdida farsa representada em frente de um sinistro pano de fundo.

Com alcance internacional, o “salão de desenhos”, à crise.., é um espaço aberto para o debate, com ênfase em temas actuais da arte contemporânea. Apresentada numa »galeria« e com uma disposição derivada dos »salões« do início do século vinte, ou seja, apresenta-se inscrita no domínio tradicional expositivo do espaço galerístico (cubo branco).

Pessoalmente, à crise é também uma só palavra, a qual implica e tem implícito que, se tu não gostas do lugar onde vives, muda-te (um dos indicativos desenhos do outro, por Adam Latham). Assim, neste contexto, o verbo, na sua função sintáctica, surge como uma palavra-ordem (o título da exposição comanda e é ordenado por – no sentido do movimento que anima o physis, mas, em simultâneo, sob o nome do logos, implica também a predicação da palavra). A simplicidade das obras apresentadas e a complexidade da realidade prevalece enquanto convidam à reflexão sobre uma variedade de eventos actuais.

Ao abordar o potencial humano e artístico a exposição fomenta debates sobre os corpos estranhos (a ilusão da luz) e a participação na norma (a verdade da escuridão). A predicação implica a transformação, a mudança no espaço, um deslocar-se de uma posição para outra.

à crise..
Salão de Desenho
Comissariada por Rui Almeida e Carlos Noronha Feio
at Sopro – Projecto de Arte Contemporânea, Lisboa
10 de Dezembro 2009 a 9 de Janeiro 2010

with: Martinha Maia, Romeu Gonçalves, Lúcia Prancha, Manuel Santos Maia, Paulo Mendes, Lara Torres com Ana Santos, Francisco Sousa Lobo, Catarina Viana, Carla Cruz, Evgenia Tabakova, The Hut Project, Patrick Coyle, Mikael Larsson, Francesca Anfossi, Carlos Noronha Feio, Sara Nunes Fernandes, Adam Latham, Giorgio Sadotti, Bruno Borges, Patrícia Sousa, Soraya Vasconcelos, André Alves, Pedro Alves, Miguelangelo Veiga, Ana Guedes, Paula Prates, Manuel Furtado dos Santos, Ana Sério, Mara Castilho, João Ferro Martins, Fernando Mesquita.

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