Tuesday, 15 May 2012

Review: Hans-Peter Feldmann


Serpentine Gallery
Hans-Peter Feldmann

Uma das peças concebidas por Hans-Peter Feldmann para a exposição na Serpentine Gallery, Shadow Play (2009), e apresentada na Bienal de Veneza, em 2009, consiste em sete focos de luz direccionados para uma parede. Entre os candeeiros e a parede está um conjunto de objectos (brinquedos, copos, facas, pequenas estátuas, etc.) em movimento. A silhueta destes objectos é projectada sobre a superfície da parede inúmeras vezes. A peça no seu conjunto parece remeter para a alegoria da caverna. Esta abordagem posiciona-nos, como observadores, na condição racional.

A visão depende da reflexão dos raios de luz na superfície do objecto atingir os olhos. Desta forma, percebemos e construímos o mundo. A mente humana só consegue perceber o mundo que a rodeia através da mediação simbólica, seja religiosa, mitológica, na arte, ciência ou na linguagem. A perspectiva linear, uma forma simbólica determinada culturalmente, é a racionalização de uma impressão visual subjectiva. O mundo actual é um mundo onde a visão governa. Na pintura até ao século XIX, na fotografia desde 1836, e nos filmes, televisão, computadores, por exemplo, desde o século XX. A janela que retrata duma forma espacial a impressão do mundo é autocrática. Se, por um lado, a perspectiva linear só consegue reproduzir, a percepção de um olho, de cada vez, quando nós vemos com dois, por outro, algo se perder entre as cristas da onda de luz. E algo é excluído, ou incluído, pela pirâmide invertida de linhas curvas que define a perspectiva linear. O visual não 'reflecte' o mundo. É uma forma de 'interpretação' visual. Na exposição, esta condição é apresentada com uma disposição cacofónica, um Kunstkammer de objectos visuais recolhidos por Feldmann. Fotografias, livros, esculturas, instalações e pinturas sobrepõem-se, confundem-se e sucedem-se uns aos outros pelos espaços da galeria. Circunstâncias que têm vindo a ser o normal nas exposições apresentadas na Serpentine Gallery, como foi o caso da retrospectiva da obra da artista brasileira, Lygia Pape, entre Dezembro de 2011 e Fevereiro de 2012. A excepção, óbvia, era a sala com a Tteia, dada a sua condição física.

Para a exposição na Serpentine, Feldmann adquiriu o conteúdos de cinco sacos e os sacos a mulheres, algumas suas conhecidas, por €500. Fotografias pessoais, sapatos, óculos de sol, telemóveis, cartões de crédito e débito, mapas e guias, chaves, canetas e lápis, espelhos, cigarros, isqueiros, pastilhas, moedas e notas, bilhetes de viagens, recibos de compras, baton, verniz, eyeliner, tampões para os ouvidos e para os ciclos menstruais, entre outros itens, foi o espólio conseguido. Dispostos de uma forma organizada dentro de caixas de vidro, estes objectos pessoais são transformados em espécimes arqueológico-sociais informativas do capital social contemporâneo. Podemos não ficar a saber qual a origem e para quê tanto objecto transportado dentro de um saco (é um mundo velado para muitos de nós), qual o seu significante e significado, mas finalmente ficamos a saber que o mito urbano é real: que cada saco é um microcosmos individual, e que as possibilidades de conteúdos nos sacos são infinitas. Mas, ao nível da interpretação, podemos agregar algum sentido através da leitura dos objectos presentes e discernir que o de Suzanne (Berlin, 38 anos) é um 'cosmo' caótico, e o de Renate (Cologne, 43 anos) é mais limpo e organizado e mostra um interesse por arte.

Ao emergir de uma tradição Pop, o trabalho de Feldmann reflecte, com um sentido de humor muito próprio, sobre a comodificação do quotidiano e dos elementos desse mesmo quotidiano. As séries, o processo, o arquivo, a fotografia encontrada, a imagem mediada. O banal e a transformação destes objectos e assuntos em classificações com valores e capitais distintos. Ele subverte com uma feição irónica as fundações da sociedade contemporânea burguesa e questiona as estratégias conceptuais apresentadas através dos Readymades e performances Situacionistas. Se, por um lado, Hans-Peter Feldmann é um precursor no uso e apropriação de imagens (começou a sua carreira artística nos finais da década de sessenta), como o fazem desde a década de 80s, Sherrie Levine, Christian Boltanski ou Richard Prince quando questionam a autenticidade da fotografia ao se apropriarem de imagens concebidas por outros, escarnece, por outro lado, a sociedade do espectáculo, conforme é analisada por Guy Debord, que sustenta que a sua função é fazer com que a História seja esquecida dentro da Cultura. Com o emergir de uma cultura dominada pela imagem, o espectáculo é de tal forma essencial na cumulação de capital que se transforma numa imagem. E um dos princípios básicos na constituição de riqueza é a condição de acumulação. Na sociedade do espectáculo o que nos é vendido é a imagem, e não o objecto. Contudo, apesar dos trabalhos de Feldmann serem vendidos em galerias por todo o mundo, pontualmente surgirem em leilões, ele não limita o número das edições, nem assina obra produzida.

Na Serpentine Gallery todos os visitantes da exposição podem levar consigo um pequeno retrato a preto & branco da Rainha Isabel II quando jovem. Uma edição ilimitada, não assinada pelo autor. Com este género de disposições, Feldmann abraça o princípio do consumismo (produção em série, consumo e acumulação) com um sentido de humor vernáculo muito próprio. Às sequências de fotografias de pares de joelhos, de todas as roupas de uma mulher, em All the Cloths of a Woman (1970), de morangos, em One Pound Strawberries (2004) – como o próprio nome indicia, quer em 'todos os trapos de uma mulher' quer nas 450gr, aproximadamente, de morangos, as 70 peças de roupa e os 68 morangos são separados e isolados na sua forma fotográfica – ou, ainda, de uma mulher a limpar uma janela e de um barco num rio, ele adiciona imagens retiradas dos textos visuais, sobre amor e felicidade, que inundam o espectro social.

Durante mais de cinquenta anos a arte de Feldmann tem mantido a mesma forma: uma mistura de imagens encontradas e fotografias tiradas por ele. Dispostas em série ou ao acaso são publicadas como livros. Um índex cronológico começado a ser construído entre 1968 e 1971. Os livros – intitulados de Bild ou Bilder (Imagem ou Imagens) e numerados – reproduzem, de uma forma barata, a preto e banco, imagens vernáculas retiradas de jornais, revistas, catálogos de compras, livros ou postais. Uma imagem por página, sem texto. Muitas destas imagens são-nos familiares, como os joelhos de mulheres ou um avião a voar. Fazem parte do nosso consciente diário e não damos conta da sua existência. Hans-Peter Feldmann apresenta-as e faz com que o foco da nossa atenção seja sobre o que possam significar. Os livros, apesar do sua qualidade opaca, tornaram-se, entretanto, documentos seminais no desenvolvimento de uma abordagem conceptual na fotografia.

A memória, individual ou colectiva, é preservada através das imagens, do simulacrum, ou representação do passado e do futuro que há-de vir. A natural perca de memória obriga-nos, individualmente e colectivamente, a criar mecanismos de suporte, arquivos - o trabalho de Nan Goldin, desde a década de setenta, ao virar a máquina fotográfica sobre si e registar o seu quotidiano, ou Weegee, umas décadas antes, ao registar o quotidiano da cidade, são exemplo. Desta forma, o poder dos livros e das fotografias como difusores da prova, permanece sempre consistente. Actualmente, a sensação de ansiedade provocada pelo confronto, parte da condição humana, está protegida por um escudo, uma muralha virtual, um ecrã. O modo relacional não produz respostas. É uma ilação. A ausência de uma relação cara-a-cara desloca e abre um outro espaço, de assumpções binárias. É como jogar xadrez com nós próprios. É impossível ganhar, mas, mais importante, é impossível perder. Estamos perante um discurso desfasado, antagónico. Pois quanto menos há para ver, mais vemos e mais queremos ver. E durante todo esse tempo permanecemos num permanente estado virtual de perplexidade. O recurso ao arquivo (constituído por imagens) permite-nos (com exemplos visuais) justificar e, de uma forma sustentada por elementos retirados do universo visual, fundamentar a necessidade da razão para as acções e decisões que tomamos, por vezes injustificáveis.

A vida, tal como a concebemos, presentemente, é regida pelo incomensurável arquivos de imagens que consigamos reunir. É o nosso capital. A primeira condição, na construção de um arquivo é a de que o espaço social contemporâneo é caracterizado por ser um microcosmos de arquivos. E a segunda é a de que estamos habituados à ausência de harmonia entre mundos, imagens e arquivos na forma como vivemos o nosso quotidiano. Contudo, tudo está metido dentro do mesmo saco ou projectado sobre a superfície da uma parede.

Hans-Peter Feldmann na Serpentine Gallery até 3 de Junho de 2012

All imagens:  Hans-Peter Feldmann
 Installation view, Hans-Peter Feldmann 
Serpentine Gallery, London 
(11 April - 5 June 2012)
 © 2012 Jerry Hardman-Jones

Published at Molduras: as artes plásticas na antena 2: Hans-Peter Feldmann.

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