É-nos pedido para ir numa romaria. Participar sufragando. Manifestarmo-nos publicamente de forma devida com instruções precisas. Enquanto é transportada numa liteira, a artista, Ana Fonseca, parte de uma circunstância profana, de condição humana – o Museu Nacional dos Coches –, para um espaço conjecturado pela consagração, de condição sagrada – a Ermida de Belém –, onde os objectos (a liteira e a projecção vídeo informativa sobre o conceito Almack’s #1) estarão dispostos sob a índole venerativa.
A artista seculariza um objecto que se tornou em high culture – uma peça do museu – da mesma forma que Duchamp, quando decidiu expor o porta garrafas e outros readymades ao incorporá-los como tais na reflexão estética. Com este sacrifício residual, Ana Fonseca mostra como tudo pode ser reciclado e reterritorializado em algo útil. Mais do que a simples apropriação de artefactos culturais, ela reinterpreta os temas abordados, reabita-os com sensações simultâneas, de forma sinestésica, numa fusão do sagrado com o profano. Divergente, inquestionavelmente, das transgressões de Vito Acconci, pois estas decorriam até quando as pessoas entravam no espaço privado; distinto das situações provocadas por Tino Sehgal, na aplicação da Lei Natural enquanto questiona a Lei Romana; ou dos acontecimentos criados por Cristina Lucas, ao investir no observador o poder da acção participativa.
Em Almack #1, o observador está, numa relação espacial, posicionado de fora, excluído através dos meios da sua própria inclusão. A dimensão temporal das acções forçam o observador a colocar-se (posicionar-se) numa posição externa ao acontecimento. Disposição onde existe a comunicação, mas onde não pode participar. Este pode observar o que aconteceu nesse espaço interior (incluso) mas, no entanto, não lhe é permitido incluir-se, fazer parte. O observador está presente, mas como testemunha da acção.
A comunicação com a obra de arte transporta o observador para o espaço de contemplação da obra, enquanto permanece no espaço do processo contemplado. O observador só poderá regressar ao percorrer o espaço envolvente à obra e criar a sua própria narrativa sobre as diferentes possibilidades de existência de um elemento comum – o assunto. Os objectos posteriormente depostos na Ermida actuarão como um sinal da transferência. Desta forma, os vários elementos permanecem impressos com a memória do tempo e do seu uso diário.
O observador é colocado como complemento à produção da obra de arte. Este não existe na forma de “público,” mas, sim, como uma “multidão de testemunhas”, cuja missão é a de agir como mediadores entre o que está escondido e o que ficará visível. Entre os diferentes momentos que compõem a acção.
A artista concebeu três momentos distintos em que nós, como observadores participativos, interagimos na construção do mundo real em confronto com a idiossincrasia da cultura actual. (Este paralelo entre o contemporâneo e o passado fazem parte do discurso de Ana Fonseca e são elemento no seu sistema de representação).
O segundo momento existe quando percorremos e acompanhamos a artista, na sua via crucis, desde do espaço público temporal – a praça Afonso de Albuquerque –, ao espaço espiritual – na travessa Marta Pinto.
O terceiro momento existe na ocupação do espaço secular onde é possível contemplarmos a narrativa dimensional de imobilização temporal da obra de arte, na pequena igreja rústica existente na travessa.
O último, ou primeiro, é o da contemplação, e refere-se à observação da instalação em si mesma – a secularização do sacrifício.
Na cultura actual temos dois modelos diferentes que permitem sincronizar a dimensão escultórica de um espaço bidimensional de representação pictórica e um outro espaço tridimensional, o qual contém os segmentos que formam a união entre uma imagem e outra, onde a tenção existente introduz o observador na dimensão temporal da obra.
O primeiro modelo reporta-se às narrativas exploradas pelo objecto, nomeadamente, através de suportes tradicionais como a pintura, o desenho, esculturas e, mais recentemente, filmes ou, ainda, à disposição estética de objectos num espaço.
O segundo modelo reflecte a ocupação do espaço pela obra de arte em si. Almack’s #1 insere-se neste último modelo, como uma narrativa dimensional. Se, por um lado, este sinal cultural desenvolvido por Ana Fonseca reflecte a complexidade da crise actual, em particular: quando revisita um dos conceitos de locomoção humana há muito abandonado; quando sugestiona uma revolução na produção económica automóvel; e quando apresenta alternativas aos desafios ambientais do século XXI. Por outro lado, Almack’s #1 reflecte o tempo de imobilização da obra de arte e o tempo de imobilização do espectador enquanto está localizado perante a obra, o objecto.
A matriz da pesquisa da artista impõe-se sobre uma linha cronológica de evento e situações, sejam históricas, sejam de cariz mais auto-biográficas. Esta relação, no entanto, não é transferida para o espaço de exposição quando as imagens estão em movimento, e os espectadores também continuam a deslocar-se na narrativa bidimensional da exposição.
É importante recordar, além disso, que o tempo de imobilização da obra de arte resulta do compromisso entre a artista e o assunto reproduzido; entre uma estética condicionada pelos preceitos relativamente autónomos - ou as tradições (normas) do género - e os requerimentos individuais, enquanto reflecte a perspectiva individual do observador em relação à obra, a um nível, e ao conceito, num outro nível.
É óbvio que isto causa uma situação em que o tempo de contemplação e o tempo do processo contemplado entram em conflito. O visitante do museu ou da ermida, por exemplo, é transportado, por um vídeo ou por um objecto, ambos expostos como elementos seculares, para um estado de dúvida, de desejos insatisfeitos, de conflitos por resolver. Apreende expectativas contraditórias, quando confrontado com o meio expressivo. Esta sensação é igualmente reproduzida quando o observador está perante uma instalação ou se depara com uma intervenção.
A acção no seu todo é efémera quer no tempo quer no espaço. Se no momento inicial a liteira é um elemento representativo do capital simbólico, por estar inscrita pelas paredes de um museu, no segundo é o da transformação da sua condição em relação à função. Exerce-se a partir do instante em que esta se encontra envolvida pela condição natural humana, seja ao transportar a artista no seu ventre ou seja ainda ao ser acompanhada durante o percurso, entre o local de origem e o local de depósito. Entre o museu e a ermida, dois espaços, por excelência, de secularização. A terceira acção reporta-se à banalidade da destituição da sua função, de vindicação e atribuição do que estará nas mãos de outrem, a validação de um reiniciar.
Walter Benjamin, no seu texto seminal sobre a reprodutividade de uma obra de arte na era actual, fala da importância de um elemento presente no original quando se refere ao conceito de autenticidade da obra de arte. Um componente que não é possível captar. “Mesmo na reprodução mais perfeita existe um elemento ausente:” a sua presença no espaço e tempo, a sua existência única no lugar em que ela se encontra. É nessa existência única, e somente nela, que se desdobra a história da arte. Esta existência única da obra de arte determina não só as transformações à qual foi sujeita durante o tempo da sua existência, a passagem do tempo, a sua estrutura física, como também as relações de propriedade em que a obra de arte ingressou. “Os vestígios das primeiras só podem ser investigados por análises químicas ou físicas, irrealizáveis na reprodução; os vestígios da segunda são o objecto de uma tradição, cuja reconstituição precisa partir do lugar em que se achava o original. O aqui e agora do original constitui o conteúdo da sua autenticidade”.
A aura, a qual se refere Benjamin, é, pois, entretanto, o resultado de uma interpretação por parte do observador do carácter sensorial da obra de arte ao induzir para um determinado tempo e espaço. Assim, se o primeiro momento, da acção montada por Ana Fonseca, é reflectido como o tempo de imobilização do espectador, os outros momentos, repercutem-se como tempo de imobilização da obra de arte. Aliás, conforme é defendido por Boris Groys, o tempo começa, pois, a ser experimentado, conceptualizado e tematizado com formas novas. Através da renegociação da relação entre o tempo de contemplação e o tempo do processo contemplado.
Deste modo os objectos depostos na Ermida e no Museu actuam como um sinal da transferência animista. O vídeo e a instalação são, de uma certa forma, uma reflexão de protecção do espaço privado, de separação do que é do domínio público daquilo que é da esfera privada do próprio objecto. Pois, enquanto o objecto se encontrar suspenso na acção, mas assiste-se à transmissão do sinal por Ana Fonseca, como elemento humano no processo animista, assiste-se ao sacrifício da obra de arte. Almack’s #1 promove, de forma geral, um enquadramento no qual a sensação reproduzida reportar-se à noção de identidade cultural, à imagem do desejo enquanto é representada socialmente. O sacrifício surge como forma de violação e retira o sagrado da coisa. Destrói a sua poética para a tornar na poética da artista para depois ser novamente secularizado. Assim o sacrifício excedentário da acção tomou a forma de secularização excedentária.
Rui Gonçalves Cepeda
Março 2011
Março 2011
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