Monday, 12 April 2010

A conservação do discurso oficial

Seja o Sudário de Turim uma peça com mais de dois mil anos ou uma falsificação da Idade Média, para milhões de pessoas esta é oficialmente considerada a mortalha fúnebre de Cristo.

Em 2002, o Sudário de Turim foi submetido a uma intervenção radical destinada a garantir a conservação da relíquia. No entanto, e por oposição às actuais percepções de conservação e aos modelos condutores das práticas de restauro defendidos pelos principais organismos internacionais de conservação e restauro, receia-se que o impacto negativo da intervenção seja muito mais substancial do que o da premissa que levou àquele diagnóstico.

Esta intervenção consistiu essencialmente na remoção de pequenos pedaços de material orgânico, aplicados em 1534, para emendar zonas danificadas por um incêndio. Foram aspiradas grandes porções de áreas do sudário para retirar poeiras e outros resíduos. Realizaram-se ainda outras medidas correctivas necessárias para melhorar a aparência visual da relíquia.

Seja o sudário uma peça com mais de dois mil anos ou uma falsificação da Idade Média (séculos XII-XIII) com menos de mil, para milhões de pessoas – também em Portugal – esta é oficialmente considerada a mortalha fúnebre de Cristo. Mas o certo é que o objecto é uma evidência histórica, um artefacto arqueológico de interesse científico devido à origem, ainda por explicar, da impressão de uma imagem – os vestígios de um homem – que tanto é tridimensional como um negativo fotográfico, numa matéria orgânica.

A antítese da função de produção em massa sobre a sua autenticidade – neste caso do Sudário de Turim – consiste no isolamento de um objecto e na sua posterior colocação fora dos limites aceitáveis institucionalmente, por quem tem autoridade para definir esses limites numa comunidade global, enquanto apresenta uma impressão de solidez (actualmente visual) no discurso oficial da edificação e aceitação dos novos limites como já existentes.

O estratagema de um bom plano de marketing, principalmente numa sociedade construída sob uma premissa católica, consiste em criar a ilusão de escassez, ao jogar com a obscura nostalgia de privação, enquanto nega a existência de quantidade. Esta função parece justificar a precariedade que afecta toda a paisagem cultural contemporânea, ou seja, no processo de desordenação que distingue a nossa época.

Published at NS'222/IN#118, Mercado da Arte (70), (Diário de Notícias N.º 51502 e Jornal de Notícias N.º 313/122), 10 de Abril de 2010, Portugal. Imagem frontal do Sudário de Turim como foi fotografado em 1898 Courtesy : Aldo Guerreshic (todos os direitos reservados

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