Monday, 26 April 2010

O piquenique de Múrcia

Cristina Lucas transformou uma refeição num diálogo sobre a arte e a sociedade.

Inscrita no projecto Dominó Canibal [NS’ 222], a artista Cristina Lucas estruturou e criou um diálogo entre os vários intervenientes, com a forma de um piquenique, no Jardim del Malecón, no centro da cidade de Múrcia (Espanha). A intervenção da artista trouxe para o mesmo espaço o discurso técnico dos artistas participantes, do curador e de quem organiza, dos críticos e dos jornalistas, do público especializado e do público em geral. Mas o mais importante é a aproximação entre as diferentes áreas sociais, onde os vários intervenientes tomam parte de uma conversa de forma a explorar um determinado assunto, com o respeito devido entre cada uma das partes.

Num banquete existe um diálogo entre os vários intervenientes num qualquer espaço delimitado por fronteiras imaginárias – seja no saborear da comida confeccionada, no apreciar do vinho ou entre as pessoas sentadas à mesa. Uma refeição não é um monólogo; a refeição serviu para a artista questionar directamente os jornalistas e críticos presentes sobre «o que fazem quando não percebem uma obra de arte». Conforme expressa Cristina Lucas, «se um jornalista tem o direito de me questionar sobre a minha obra, sobre o que faço, isso dá-me o direito de também lhe fazer uma questão, sobre a sua profissão de jornalistas ou crítico de arte».

O segundo aspecto na intervenção de Cristina Lucas debruça-se sobre o espaço de exposição – a Sala Verónicas é uma igreja conventual de estilo barroco do século XVIII, nomeadamente sobre os conceitos católicos aplicados à arte conceptual. Sobre a bienal o curador referiu que este evento «traz para dentro dos limites institucionalizados por assuntos simbólicos e de disciplina, tudo o que deve de ficar de fora, tudo o que está nos domínios do inútil e não deve de ser incluído».

Uma outra leitura na intervenção de Lucas no evento Dominó Canibal está relacionada com um dos princípios do próprio projecto. Por ser uma plataforma para sobreposições e descontinuidades «com algumas complexidades, pois dadas as circunstâncias tinha de “comer” Jimmie Durham, a intervenção foi um extenso processo onde tudo foi transformado e reutilizado», esclarece a artista.

No decorrer de todo o processo de «canibalização» a sua intervenção da artista foi gravada. Neste acto de registo documental da acção, «a obra passa de objecto registado para o registo da concepção do objecto. Os vídeos transpõem os limites físicos ditados pelos objectos em si. Mas também estão disponíveis para ser transformados». Assim, «seja qual for o esquema apresentado e sejam quais forem as questões de direito de autor ou de propriedade intelectual, as obras de arte ficam ao serviço dos que vêm a seguir».

Por outras palavras, «os restos dos objectos são utilizados – a economia do inútil – pelos artistas para fazer readymade, como são também utilizados pelas pessoas no seu quotidiano para satisfazer necessidades básicas». Por exemplo, os bidões transformados em grelhadores, os pneus em baloiços, ou os cartazes em legendas informativas.

No final de qualquer banquete, o que fica são os restos, os excedentes reutilizados de uma actividade, e «ao dar-lhe um sentido, o ter que os usar – por isso o barbecue realizado no parque público no cento da cidade durante a apresentação do projecto –, está-se a fazer útil a obra de arte, ou seja, está-se a dessacralizar a obra de Jimmie Durham. O retorno ao espaço de exposição, a Via Sacra para a Sala Verónicas, transforma as peças em obras de arte, e aqui entramos no processo de sacralização», clarifica a artista.

Published at NS'224/IN#120, Mercado da Arte (70), (Diário de Notícias N.º 51516 e Jornal de Notícias N.º 327/122), 25 de Abril de 2010, Portugal. Cristina Lucas, Dominó Canibal (VI. Sacrificar / To Sacrifice: happening of press-conference lunch, using the grills and chairs with journalist and critics, and artist and curator answering questions on the condition of making questions in turn), 2010. Courtesy PAC – Proyecto de Arte Contemporánea

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